Quando eu nasci, meus pais não sabiam o que eu era.
Perguntaram para minha mãe e ela respondeu que era um menino pelos pulos que eu
dava. Meu pai já tinha até o nome de macho para mim: me chamaria Nardele. Nome
especial de um rapaz do Paraná, que jogava futebol e que ele admirava quando
novo. Mas eis que ao meio do caminho, aconteceu o improvável: não nasci menino.
Havia uma equivocada perereca abaixo de minha cintura, e contrariei todas as
expectativas.
Meu pai se surpreendeu. Nem engravidar de mim eles esperavam,
então o nome já escrito no papel deveria ser mudado às pressas. Bons pais que
são, quando eu nasci eles me aceitaram de braços abertos, me amaram muito,
deram-me o nome de Vanessa. Nos primeiros anos de minha vida morei em Santa
Catarina; depois, fui para o Mato Grosso. Voltamos para Santa Catarina novamente,
e de lá, viemos para Tupandi, no Rio Grande do Sul. Pequena cidade de quatro
mil habitantes, tinha menos ainda na época. Cresci e comecei a ir na escolinha,
a estudar e fazer amizades. Eu era ingênua e feliz. Minhas brincadeiras era
pega-pega e amarelinha. Quando fui crescendo, minha mãe acostumou-se a vestir a
mim e a minha irmã com as mesmas roupas. Não éramos gêmeas, mas até o cabelinho
tigelinha era igual. Indignada, pedi para ela mudar quando já estava mais
crescidinha. Comecei a escolher minhas próprias roupas, e trabalhei para ganhar
meus primeiros trocadinhos.
Não beijei na boca até meus dezessete anos. Puxa vida, não?
Não. A primeira vez que apareci conversando com um menino na frente de casa, lá
pelos quatorze anos, meu pai enlouqueceu. Fiquei meio traumatizada, mas também
sempre tive vergonha dos meninos. Resolvi dar um tempo. Tudo bem, eu não
precisava deles até então. Ao invés disso, escrevia poemas no meu velho
caderno. Saía com minhas amigas. Diverti-me muito com minhas amigas. Fui
paquerada algumas vezes, um menino quase morreu de amores por mim. Ok, ele
sobreviveu e eu não me culpei por isso.
Um certo e lindo dia, voltei da biblioteca e fui paquerada
por um homem desconhecido que me ofereceu quinhentos reais para “dar um rolé
por aí.” Emudeci. Certo, ainda consegui ser educada, dizendo: “Não, obrigada.”
Cheguei em casa aterrorizada e morri de vergonha de contar para minha mãe.
“Como os homens podem ser assim?”, pedi. “Alguns deles são”, ela me respondeu e
me calei, mesmo sem entender.Anos depois, me apaixonei pela primeira vez. Beijei um
garoto duas vezes, e ele quis me tirar do baile para “dar uma volta”. A tal da
volta tão comentada e alertada por minha mãe. Homens assim são cretinos, sem
vergonhas, cafajestes. Distância deles! Eu fiquei me perguntando como alguém
tinha coragem de propor algo assim de supetão. Voltei para casa e fiquei sem
entender- novamente- como os homens podiam ser assim. Nada era como eu pensava.
Na primeira viagem de ônibus sozinha que fiz- aos dezoito
anos!-, minha mãe estava com o coração na mão. E eu só estava viajando até a
casa de minha tia em Dois Irmãos (uns 35km). Mãe coruja às vezes realmente é um
problema. Não entendi esse estardalhaço dela ter tanto medo assim de que eu me
perdesse, me sequestrassem ou coisa do tipo. Sentei no banco, e um homem sentou
ao meu lado. Tudo bem, Vanessa. Não
respire. Não se mova. Não olhe em sua direção que ele pode te estuprar. O
homem virou para mim e começou educadamente a conversar. Mas disse-me coisas
que eu não compreendi. Que mulher tem que se cuidar. Como assim, cuidar? Atordoada,
escutei ele me contar as peripécias de ser mulher, sendo que- olha que
engraçado!- ele não era. Então desci na minha parada de ônibus aliviada por
ficar longe para sempre desse homem. A promessa de que as mulheres precisam a
todo custo saber cozinhar não coube para mim. Queimei meu braço no cano do
fogão a lenha de minha tia e voltei para casa com uma mancha terrível como
cicatriz e lembrança.
Depois disso, peguei umas aulas práticas com minha mãe para
aprender -de fato- a cozinhar. Pelo menos sei fazer pão, e me viro no feijão e
arroz. Aprendi a me maquiar. Aprendi que
preciso me comportar bem. Aprendi que usar shorts curtos na rua significa que
você é vulgar. Que batom vermelho é coisa de piranha, e mulher que se preze não
sai de casa sozinha depois das dez. Aprendi muitas coisas que julgo competente,
e outras que não. Aprendi por mim mesma que sou em quem devo julgar e competir
a mim mesma o que eu acho bom. A vida é minha, não é mesmo?
Sou mulher, mestruo, tenho cólicas e vez ou outra, crises de
terror com meu cabelo, minha pele e por aí vai. Sonho com minha própria casa,
meu próprio carro, e não porque a sociedade me impõe isso, mas porque isso é
algo significativo para mim. E acredito em meus sonhos. Se eles competem à
mulher ou não, não interessa. Interessa meus sonho, minha alegria de viver e a
razão pelo qual eu faço o que faço. Mulher que se preza merece tanto salário
quanto seu marido. E tanto amor quanto o que eles também pedem em silêncio, no findar de cada noite. Acha que só as mulheres são carentes? Encontre um homem, e
você verá que eles são tão dependentes quanto nós. Isso não é coisa de
mulherzinha, e se você reparar bem, necessitar ser amado, aceito, respeitado e
valorizado é um desejo de todos nós, mas
pelo qual as mulheres precisam batalhar muito mais somente pelo fato de serem
consideradas ‘frágeis” e por nascerem com a dita cuja “perereca”.
E então, concorda comigo?
Um beijo!
Vanessa Preuss
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